segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Encontro IV: Soltando a voz no MAUC I

Esse encontro teve inspiração em recente viagem ao Rio de Janeiro, quando encontrei Ângela Hertz, instrutora de voz de muitos artistas e que me foi apresentada por Elke Maravilha e Rubens Curi. Ângela, ex-cantora, teve uma história de ascensão e queda após a perda da voz, o que lhe valeu um processo quântico de transformação pessoal, tornando-a, atualmente, referência no campo da voz na cidade maravilhosa. Conversei com ela e fiz uma única aula dividida em duas etapas, uma parte na sua sala de trabalho e a outra na sala da sua casa, com a perspectiva de continuar essa orientação vocal a posteriori. Vale ressaltar que Ângela é extremamente responsável como professora e sua pedagogia inclui cuidados na transmissão de práticas e conhecimentos e dá relevância ao processo de autoconhecimento, que considera fundamental nessa nova ordem vocalizadora. Ela prefere aceitar alunos que se comprometam com essa ética.

Movida por esse clima com a professora de canto e com inspiração constante em Yoshi Oida, recebi o grupo que se formou na sexta, 18 de novembro, no auditório do MAUC-Museu de Arte da UFC. Marco Leonel Fukuda, Tainara e Raiana, bolsistas do site da Rádio Universitária FM-RUFM (107,9MHZ - http://www.radiouniversitariafm.com.br/),  Leovigilda Bezerra, que, entre outras atividades, produz o programa Música Erudita nesta mesma emissora e, ainda, a atriz  Sol Moufer, atualmente às voltas com espetáculo baseado em Erêndira e Sua Avó Desalmada, de Gabriel Garcia Marquez, sob direção de Sâmia Bittencourt.

A inspiração em Ângela levou-me - após escutas e vocalizações pelas várias salas do museu - a formar um círculo no final do trabalho, na sala inicial, para uma conversa. Subjacente, a intenção de reencontrar vozes 'perdidas' no esquecimento, algo da biografia vocal, (re)conexão com uma identidade possível...! Assim como Ângela refaz constantemente seu caminho vocal, atualizando-se,  a pedido meu, os presentes narraram momentos importantes de sua trajetória vocal. Esse exercício tão simples de tocar a memória, narrar sua própria biografia, escutar a história do outro e dialogar sobre isso é capaz de nos levar a descobertas extraordinárias sobre nós mesmos e à consciência que pode impulsinar às transformações necessárias e/ou queridas.

BIOGRAFIA VOCAL
Mudanças vocais na adolescência marcaram a relação de Marco e Caio com a própria voz. Como lidar com as oscilações próprias dessa fase transitória é uma das questões que importam para compreender como as vozes passam a existir na vida de cada um dos rapazes. Marco fala de que, com o tempo, foi-se acostumando à própria voz em experiências de gravação na Rádio Universitária FM. A mesma emissora tornou-se referência para Caio no encontro com sua identidade vocal atual. Jovem, vivendo experências radiofônicas opostas e intensas, simultaneamente - emissora comercial e emissora educativa -, Caio viu-se diante da perspectiva de escolha. Mudou, então, aquilo que mais lhe identificava vocalmente do ponto de vista profissional, agora mais dado aos conteúdos e a forma de trabalho da RUFM.

Segundo Sol Moufer, sua voz era excessivamente grave na infância. Por causa disso ouvia comentários dos adultos, o que a fez tentar colocá-la no registro mais agudo. Atribui a esse fato ter deixado de falar outras coisas. Ela diz que, quando começou a fazer teatro e, principalmente, quando começou a cantar no teatro, ficou mais perceptível o timbre nasalizado e, mesmo não se incomodando com isso, reconhece que no trabalho de atriz isso acarreta algumas dificuldades. Ela acrescenta que "foi também por falar nessa voz que me veio a curiosidade de relembrar da minha voz de quando era criança. Quem sabe os encontros possam buscar isso...".

Raiana nos faz pensar sobre uma certa geografia relacionada à constituição da voz, um percurso geográfico da voz e como ela relaciona-se com os lugares por onde passa. Raiana acostumou-se aos comentários de outrem sobre seu sotaque diferente do lugar onde nasceu e de onde vive e, aos insistentes, responde referindo-se à herança materna: "... isso se  deu porque minha mãe já havia morado em alguns lugares diferentes, e eu tinha o mesmo sotaque dela.". Ela refaz parte de sua geografia vocal:

"Minha mãe nasceu na Bahia, numa cidade chamada Cícero Dantas. Minha avó era da Bahia e meu avô, do Ceará. Daí ela morou próximo de Minas na infância, lugar a que ela atribui o sotaque dela. Na adolescência ela veio para Fortaleza, onde morou muitos anos antes de ir para João Pessoa-PB com o meu pai (que é cearense), na época em que eram casados. Aí eu nasci em João Pessoa e morei oito anos lá. Apesar disso, nunca tive o sotaque de lá. Com 8 anos vim para Fortaleza com meus pais e minha irmã, onde vivo até hoje. Sempre acham meu sotaque diferente, mas nunca conseguem identificar de onde ele é (dizem vários lugares, muitas vezes São Paulo, mas nunca a Paraíba). Daí eu explico que nasci em João Pessoa, moro em Fortaleza, mas minha mãe é baiana, morou próximo de Minas (além de ter morado no Piauí por dois anos) e eu tenho um sotaque que, acredito, é uma mistura de todos esses lugares."

Outra questão, no caso de Raiana, é que ela considera sua voz baixa, mesmo se esforçando para torná-la mais alta e observa como precisou "tentar impostar mais a voz" após começar a cursar jornalismo. Esse também é o caso de sua irmã, Tainara, que tem buscado superar a cada vez que se coloca diante dos microfones da Rádio Universitária FM. Porém, os problemas mais recorrentes, no caso de Tainara, são a timidez e a lentidão na fala. A timidez lhe acarreta outros problemas de comunicação, impedindo-a muitas vezes de se colocar numa conversa ou falar em público. Tentou superar esse dilema quando entrou num coral, porém, a tensão que lhe dominava frequentemente também 'fechava' sua garganta. O arrastado na fala só fora percebido por ela em escutas recentes gravações na emissora que trabalha, o que, para algumas pessoas do seu convívio, era confundido com 'estado de zen budismo'. Ainda sem saber o que fazer para superar esses problemas, Tainara segue buscando soluções.

Leovigilda nos conta sobre várias situações críticas com sua voz, desde o fato de falar alto a acontecimentos frustrantes na área profissional. O tom muito agudo da fala, a insistente inflamação na garganta, respiração errada, são alguns problemas que estão sendo verificados por ela. Conversamos na perspectiva de que tudo isso poderá se transformar a partirde cuidados a serem empreendidos. A primeira atitude para fazer a mudança necessária é, ao meu ver, aceitar sua própria voz, suas características naturais. E é dentro desse contexto que Leovigilda decide ser a locutora do programa que produz, após fazer testes com outros locutores e descobrir que a locução ideal para o programa Música Erudita, nesta fase, não deve partir, necessariamente, de uma voz pronta, de locutor profissional, mas de uma voz que corresponda ao que está sendo produzido, que promova intimidade entre o programa e o ouvinte. Com essa finalidade, ela busca cuidados para realizar seu objetivo. Numa imagem metafória, ela brinca com a situação e diz que usar ou não a voz profissionalmente era algo 'optativo', mas agora, com a saída da apresentadora do programa, tornou-se 'obrigatório' que ela assumisse esse posto.

OFICINA
A presença de Sol Moufer neste IV Encontro contribuiu para não deixar escapar o propósito da oficina de abordar a voz de modo mais integral. Com presença maior de radialistas, poderíamos ceder à tentação de ficar no específico da locução radiofônica, o que não seria nada mal; certamente faremos isso em breve. Porém, é importante, nessa etapa dos Encontros Voz Criativa, ressaltar a abordagem mais ampla, pela carência desse enfoque nos meios, entre nós, nos quais a voz é instrumento central. Essa abordagem reintroduz a voz no corpo, mudando radicalmente nossa postura em relação a esse maior meio da comunicação humana. Justamente por isso, por sua importância, é necessário, a partir desse enfoque corporal, considerar também todas as outras dimensões, como, por exemplo, a voz como instrumento de autoconhecimento, a relação da voz com a escuta, com a memória, com o espaço etc.

POR AGORA...
Ao longo de uma carreira profissional de mais de 20 anos em que atuo com a voz no centro de várias atividades (rádio, música, teatro, cinema etc), vez por outra, me aparece quem diga, em tom de frustração, que gostaria de ser locutor/locutora de rádio mas não tem voz pra isso, no que contesto dizendo que estou escutando uma voz. No caso teatral, percebo e também escuto de alguns frustrados a tendência para certo engessamento ou total descaso com o uso vocal, muitas  vezes incorrendo em problemas de saúde. Com outros agravantes implicados, como uso constante de cigarro, noites sem dormir etc, percebo que, no caso musical, esse tipo de problema também se faz presente.

                                                       ( EM CONSTRUÇÃO )

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Encontro Três

Realizamos mais um encontro Voz Criativa. Desta vez, tivemos a companhia de Aristides Neto, Marco Leonel Fukuda e Tainara. Os dois primeiros fazem parte da Companhia da Arte ( http://www.companhiadaarte.blogspot.com/ ) e os dois últimos são da equipe de bolsistas da Rádio Universitária FM e cuidam do site da emissora ( http://www.radiouniversitariafm.com.br/ ). Marco e eu fazemos uma ponte entre a Companhia e a Rádio. Nosso intuito com esses encontros é facilitar a descoberta do caminho de acesso à consciência corporal e, portanto, vocal e criar com base nessa consciência.

Contamos com a disponibilidade imediata do Diretor do Museu de Arte da UFC - MAUC, Pedro Eymar, em nos acolher para este e outros encontros. Assim, o auditório do MAUC nos serviu bem na execução dos exercícios e deixamos agendado o próximo encontro que será dia 18 de novembro no mesmo horário deste: 17 às 20 horas, quando nos projetaremos também por outros cantos do museu, observando, criando interações entre o corpo e o espaço, a voz e o espaço.

Afora as referências corporais/vocais, científicas, estéticas e de autoconhecimento que sempre sugestionam estes encontros, contamos mais uma vez com os ensinamentos contidos em O Ator Invisível, de Yoshi Oida, que nos serviu de inspiração geral e também específica, nesse caso no que tange ao uso do capítulo O COMEÇO, quando o autor trata dos Nove Orifícios. Também nos inspirou a frase de Erivan Sales ( ou Erivan Produtos do Morro ), proferida mais cedo durante almoço de confraternização do Quarto Forrainbow em Iparana: "A voz hoje em dia perdeu a força", enquanto narrava um conflito ocorrido na Barraca Biruta por ocasião da presença dos Racionais MCs. Outra inspiração veio da lembrança de Maristela, personagem antiga de Aristides para quem ele dedicava uma voz em falsete. Explicou-me ele que, não podendo mais fazer o falsete, criou a calada Mariinha com o mesmo espírito de Maristela: uma menina pura, de espírito clown, serelepe, romântica.

O JO-HA-KIU DO ATOR INVISÍVEL
O livro de Oida articula-se dentro da tradição do "...teatro clássico japonês ( Nô e Kabuki ), artes marciais, somado ao melhor do teatro ocidental, em que o corpo é fundamento essencial" e nos ajuda a manter um ritual de cuidados em direção à "consciência desperta", a cuidar da parte nossa invisível. Para Yoshi Oida, "...nos seres humanos existe uma superfície visível e uma grande porção escondida por dentro. Aquilo que vemos é sustentado por aquilo que não vemos...". Entre outros pontos importantes deste guia, ressaltamos os cuidados com os Nove Orifícios ( deixamos temporariamente de lado apenas os olhos e o que permite a saída de água ) e procuramos entender o JO-HA-KIU. O autor lança mão do ensinamento de mais de seiscentos anos de Zeami, mestre japonês de nô, para nos dizer que: "Todo fenômeno no universo se desenvolve através de uma certa progressão. Mesmo o canto de um pássaro ou o zunido de um inseto seguem essa progressão. Isto se chama jo-ha-kiu". Outro exercício nosso foi abrir por acaso o referido livro e ler a primeira frase que os olhos encontrassem. Coube ao Marco Leonel Fukuda a reabertura deste manual e ler o mesmo trecho que ele mesmo havia aberto e lido no primeiro encontro, o que me levou a considerar o efeito sincrônico das palavras reencontradas, decerto reencantadas entre nós. Do capítulo A Interpretação, voltamos então para o ítem sobre o Tempo, que diz da importância do momento inicial, no caso de uma peça, mas que pode servir ao começo de outras ações não-teatrais. Para o nosso autor, "Encontrar um começo forte permite ao jo-ha-kiu de toda peça se desenvolver de maneira vigorosa". Ele acrescenta que "Por estranho que pareça, descobri que encontrar um bom final nos ajuda a encontrar um bom começo".

"A VOZ HOJE EM DIA PERDEU FORÇA"
Para quem se preparava para facilitar um encontro em torno do tema da voz, escutar essa frase gerou certo incômodo e lançou um desafio. Comecei a refletir, a partir da história contada por Erivan, sobre por que e em que circunstâncias percebemos o enfraquecimento da voz e o que fazer para mudar esse fato, como buscar sua força. ( Interessante que justo nesses dias me preparo para cantar FORÇA, música de Pingo de Fortaleza e José Mapurunga, que fala do caráter humano, selvagem e ancestral da força e que finaliza com "ter força é poder controlar esse bicho difícil de amansar" ). Na situação narrada pelo nosso rapper, no meio da multidão que aguardava indócil o show dos Racionais MCs, em meio ao alvoroço vocal que se deu, o que pareceu tiroteio para uns, para outros soou como o grito que controla a confusão e traduz um silêncio e uma paz desejadas. Busquei nessa compreensão complexa, e que me parece justa para o momento, suporte para conduzir a oficina desse dia 4 de novembro de 2011.

MARISTELA/MARIINHA
Tenho afeição toda especial por Maristela desde quando a vi pela primeira vez, assim como tenho afeição especial pela pessoa e pelo ator e também palhaço Aristides Neto, agora também músico, pois enamorou-se pela cuíca e busca seu jo-ha-kiu nas sonoridades e nos rítmos. Desde o final da década de 1980 nos vinculamos através da cena teatral e da vida. Juntos pela primeira vez na cena teatral, como apaixonada e arlequim, personagens da Comedia dell´arte, sob a direção de Maurice Durozier e George Bigot, encantamos-nos com nossa conjunta ação cênica e com o estado, que nos mantinha em cena e nos permitia desenvolver o jo-ha-kiu. No contexto amplo de nossa convivência fora e na cena, emergia aos meus olhos Maristela, percebendo e usufruindo da grandeza e do encanto de sua presença. Confesso que a intensidade com que gostava de vê-la atuar corporalmente correspondia menos à sua expressão vocal, porém naquela época não sabia bem como explicar o incômodo que sentia ao ouvir seus agudos e um certo arranhado na voz. Hoje me parece mais claro que Aristides forçasse sua voz para fazer Maristela falar, levando-a, após muitos esforços, a ficar muda. Como artista criativo, Aristides criou Mariinha, dando vazão à linguagem corporal junto com seus conhecimentos de mímica e outros, redimensionando, para si e para suas personagens, o uso de sua voz.

FACILITAR NEM SEMPRE É TAREFA FÁCIL
Facilitar não é nada fácil, principalmente quando criamos expectativas e alimentamos desejos em torno da recepção de nossos planos e projetos. Imaginava realizar esse encontro com mais pessoas, por perceber que algumas vezes a presença de mais gente ajuda a 'sentir' que o convite ao encontro 'funcionou'. Entretanto, me dou conta a cada momento que conduzir um trabalho com um número menor de pessoas demanda atenção maior em relação a cada um, então temos a possibilidade de nos deter mais nas individualidades, dar mais atenção as singularidades, escutar mais o que cada um tem a dizer, e de ouvir a repercussão do dito. E até dos não ditos que chegam acolhendo, complementando os dizeres. Desse contexto, emergem as linhas com as quais tecemos o trabalho. Foi assim hoje no MAUC. Pensava eu que abreviaríamos o encontro e, quando nos demos conta, já era hora de acabar. Diferente das vezes passadas, pois costumo encurtar a conversa dando mais espaço aos exercícios corporais, decidi alternar os momentos de troca de impressões e de exercícios. Assim, alternamos muitas vezes a posição corporal entre as posições deitada, em pé e sentada, sempre com a idéia de buscar um corpo e uma voz ativas, distanciados do que chamo de 'comunicação sedentária', de corpo e voz sedentários, mantidos pela atenção e pela força da presença.